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Apontamentos das Artes sobre Epidemia E Cidade

 *Lysie Reis 

Ao longo da história das cidades, as epidemias preencheram páginas bem como, telas e outros artefatos, foram expressas por artistas de referência, autorizados pelas sociedades em que se inseriam a captar a realidade possível por seus olhos, janela de suas almas. Pelo menos três obras nos chamam a atenção: Cidadãos de Tournai Enterrando os Mortos Durante a Peste Negra - Miniatura de Pierart dou Tielt ilustrando a memória do Abade Gilles de Muisit ,  A praga em Florença de 1348  de Luigi Sabatelli  e Praga em uma cidade antiga de Michael Sweerts. 
 
Optamos por usar aqui a cronologia das obras produzidas, que remontam aos anos de 1347, 1652-54 e 1802. Tal opção não tem a intencionalidade de criar um continuum mas,  validar nossa intuição de que a epidemia invadindo a cidade, em cenários imagéticos de suporte distintos, é um tema que merece ser investigado quando discutimos, na contemporaneidade, o medo do porvir da cidade, qua apesar de ser o locus do coletivo, também é o da segregação.
 
 
Figura 01 - Cidadãos de Tournai Enterrando os Mortos Durante a Peste Negra. Fonte: <https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/5/55/Doutielt3.jpg>. Acesso em: 18.mai.2020.

Na Primera obra, o mote advinha da proliferação da Peste Negra (1343 -1353), também conhecida como Peste Bubônica. Observam-se figuras humanas abatidas, caveiras e fisionomias enlutadas que, em sequência, carregam caixões e abrem covas. Originalmente, essa iluminura de 1347 de Pierart dou Tielt, foi usada para acompanhar um texto em prosa, o Abbatum memoria de Gilles le Muisit, um abade e também cronista, nascido em Tournai - cidade da França que compõe o título da arte-falecido em 1353 após escrever uma série de crônicas sobre o período da Peste Negra. 
 
Essa obra é classificada como uma das primeiras manifestações da arte europeia na representação do caos citadino impulsionado pela Peste. Seu autor, Pierart dou Tielt, era um mestre dos ofícios mecânicos, sua arte era a cópia, a miniatura e a encadernação, o que não lhe impediu de expressar seu olhar particular sobre o fenômeno. Atuava em Tournai, mas não para todos. Estava a serviço do universo cristão fato é, que tal iluminura está contida em um texto do Abade Muisit, que ficou cego pouco antes de sua morte. Como trabalhava com a inserção de iluminuras em textos, coube a Tielt agrupar, copiar e expô-lo, conferindo-lhes o que hoje chamamos de formatação e diagramação. Isso lhe elevou o status, manteve-o junto ao clero, que chegou a nomeá-lo como mantenedor dos livros da biblioteca da Abadia.
 
Esse breve contexto de sua vida nos auxilia na leitura desta Iluminura em seu aspecto funcional. Há uma onipresença do terror da peste sobre a cidade, ao passo em que existe a certeza de que Deus a protegerá visto que, no texto que acompanha a imagem, o Abade relata os milagres que teriam ocorrido em Tournai. Diante disso, podemos dizer que a obra está atrelada basicamente a uma literatura monástica relacionada à meditação sobre a proteção que Deus concederá aos convertidos. 
 
 
Figura 02 – Praga em uma cidade antiga. Fonte: <https://fotos.estadao.com.br/fotos/alias,atenas,1088563 >. Acesso em: 18.mai.2020.

A segunda obra a qual faremos referência é a Praga em uma cidade antiga, pintada por Michael Sweerts entre 1652-54. Seu autor, nascido em Bruxelas em 1618, era um artista conhecido, pintor e gravador  do período barroco, chegando a ser agregado em 1647 a Accademia di San Luca, uma prestigiada associação de artistas renomados em Roma. Tinha outras conexões importantes com os membros da Congregação Artística dos Virtuosos ao Panteão, uma corporação de artistas que organizava exposições anuais de suas próprias pinturas nas grades de metal em frente ao Panteão. Tinha um patrono, o príncipe Camillo Pamphilj, que conseguiu que o papa lhe concedesse o título papal de  Cavaleiro de Cristo, uma honra restrita a artistas renomados. Algumas das obras de Sweerts eram tão populares em seu tempo que cópias contemporâneas foram feitas, algumas pelo próprio Sweerts outras, por alunos ou seguidores.

A imagem acima é estimada como a expressão mais ambiciosa de Sweerts, pois tem uma complexa composição e muita técnica, algo que posteriormente os críticos de arte convencionaram chamar de erudição histórica e arqueológica.  A composição apresenta um cenário assustador, catastrófico e dramático de uma praga no meio urbano, que acaba se tornando um tema clássico nas artes. É uma cena de uma história aberta à interpretações visto que, não se encontra inserida em um texto, numa iluminura, não existe sequer um memorial sobre o quadro deixado pelo autor, o que nos permite colocar nossa sugestão de análise: a representação do evento da Praga na cidade serve como narrativa do mal temido, daquilo que está para além de uma guerra com armas e munições, mas que é perene, como um devir.  
 
O estudioso da arte Franco Mormando nos diz que o quadro Praga em uma Cidade, retrata uma praga específica que, segundo fontes cristãs, deve ter se passado em Roma no período entre 361 e 363 D.C, durante o reinado do imperador Juliano. A praga, diante desse contexto não vem do acaso visto que, o mesmo imperador havia incitado um regresso ao paganismo romano e o abandono ao marco cristão logo, a praga surge como uma espécie de resposta divina, mas claramente, uma punição. 
 
Sugere-se também que Sweerts estaria retratando a peleja entre catolicismo e protestantismo e seu perigo. Sua obra, considerada arte erudita, não circulou apenas entre as classes mais abastadas, mas, ficou também conhecida entre as mais pobres, por meio da circularidade cultural. O resultado é o convívio com a vigília de que a praga volta, seu retorno a qualquer momento sustenta os embates entre as duas vertentes da fé cristã.
 
Na terceira obra citada, A praga em Florença de 1348, história da arte e história da literatura novamente se entrecuzam contribuindo à compreensão sobre o período abalado pela Peste Negra. A cidade, Florença, considerada uma das cidades mais populosas da Europa do século IV, havia perdido parte considerável dos seus habitantes, que não escaparam da propagação da epidemia naquele início de século.
 
O ano de 1348 foi o ápice, o que influenciou Giovanni Boccaccio,  poeta e crítico literário italiano, para compor o cenário do livro Decameron. Logo na introdução, ele explana sobre a devastação da cidade e explica o motivo pelo qual, em sua “novela” institui uma “brigada”, composta por sete mulheres e três homens. Esse grupo abandora o meio urbano e avança em seus arredores, onde se deleitam num devir prazeroso, mas condicionado a limites e padrões de sociabilidade. 
 
A cidade ficou para trás. As personagens narram os contos sequenciais, nos quais a sociedade florentina, atacada pela Peste, tinha se tornado caótica, não pela doença em si, mas sobretudo por conta da revelação de características humanas vergonhosas ante ao paradoxo cristão do medievo. Havia sobreturo um sentido de abandono, seja sob a forma de ruptura de laços de amizade ou familiares, incluindo o mais doloroso, pais que abdicavam dos próprios filhos. Vejamos um trecho:
 
 
“Alguns faziam alarde de sentimento mais cruel (como se, porventura, tal sentimento fosse o mais seguro), e diziam que não havia remédio melhor, nem tão eficaz, contra as pestilências, do que abandonar o lugar onde se encontravam, antes que essas pestilências ali surgissem. Induzidos por essa forma de pensar, não se importando fosse com o que fosse, a não ser com eles mesmos, inúmeros homens e mulheres deixaram a própria cidade, as próprias moradias, os seus lugares, seus parentes e suas coisas, e foram em busca daquilo que a outrem pertencia, ou, pelo menos, que era de seu condado. Para eles, era como se a cólera de Deus estivesse destinada não a castigar a iniqüidade dos homens com aquela peste, onde eles estivessem, e sim a oprimir, comovido, somente os que teimassem em ficar dentro dos muros de sua cidade. Ou como se essa cólera fôsse apenas um aviso para que ninguém permanecesse em determinada cidade, por ter chegado a hora derradeira dessa mesma cidade. Como, de tais opinadores, nem todos morriam, e que, assim sendo, nem todos continuavam a viver, muitos sujeitos, de cada cidade, e em toda parte, caíam enfermos e, quase abandonados à própria sorte, definhavam inteiramente. Êles mesmos, quando estavam sãos, deram exemplo aos que continuavam sadios, para que fugissem daqueles que tombavam sob as garras do mal. Vamos pôr de lado a circunstância de um cidadão ter repugnância de outro; de quase nenhum vizinho socorrer o outro; de os parentes, juntos, pouquíssimas vezes ou jamais se visitarem, e, quando faziam visita um ao outro, ainda assim só o fazerem de longe. Tal inquietação entrara, com tanto estardalhaço, no peito dos homens e das mulheres, que um irmão deixava o outro; o tio deixava o sobrinho; a irmã, a irmã; e, freqüentemente, a esposa abandonava o marido. Pais e mães sentiam-se enojados em visitar e prestar ajuda aos filhos, como se o não foram (e esta é a coisa pior, difícil de se crer” (BOCCACCIO apud LIMA ALMEIDA, 2013, p.125).
 

Boccaccio se utiliza dos contos para fazer uma crítica social, e afirma que os laços foram corrompidos pela voracidade de dois grupos em prol de seus lucros: mercadores e banqueiros Florentinos. Como castigo, a Peste consuma uma sentença divina, uma resposta à imoralidade dos avarentos e egoístas. Após a descrição dessa situação terrível, Boccaccio fez surgir a tal “brigada”, um contraponto fictício aquela sociedade. 
 
Esta é a metáfora: as personagens do Decameron propõem uma modificação do comportamento dos florentinos na sociedade urbana. Os dez jovens que formaram a “brigada”  saíram da cidade onde não tinham laços de responsabilidade com outros, e conseguiram, no meio de tanta desumanidade e egoísmo, conservar e acreditar no afeto, no dever com o próximo, na amabilidade e nas leis morais e civis. Viviam para alegrarem-se mutuamente, mas dentro dos limites da razão: instituiram chefes para dias diferentes, definiam atividades e horários, determinavam como e quando as refeições seriam feitas, e o tema das histórias a serem contadas pelo grupo. 
 
Figura 03 – A praga em Florença de 1348. Fonte: <http://alchemipedia.blogspot.com/2009/09/plague-of-florence-1348-etching.html >. Acesso em: 18.mai.2020.

Viviam na natureza e, ao longo dos quinze dias em que permaneceram longe de Florença, constituíram uma virtuosa e harmônica microssociedade. Os contos recorrem a temáticas diversas, uns, inclusive, eróticos, outros trágicos, mas há contos sobre sagacidade, além de piadas. O livro Decameron é considerado uma obra-prima da prosa clássica italiana e nos mostra o quanto a epidemina desencadeou, da nobreza ao povo, para além da atmosfera de cataclismo, de fim de mundo, a exarcebação da condição humana. 
 
A imagem acima traz a seguinte descrição: “Inventada, desenhada e talhada em cobre por Luigi Sabatelli” (tradução nossa). Se trata de uma Água-forte, em italiano chamada Acquaforte, um tipo de impressão antiga. Sabatelli era um artista diplomado pela Academia de Belas Artes de Florença, e alcançou a posição de pintor da corte da rainha da Etrúria e duquesa de Lucca, Maria Luísa de Bourbon-Espanha. Pintava afrescos, telas, e foi também um gravador e, como tal, em A praga de Florença de 1384, expressou-se através de traços minuciosamente posicionados a fim de conferir matizes, sombras e um leve escurecimento difuso em detalhes que, na completude da obra em preto e branco, podem nos levar ao cenário dramático de então. A execução exigiu um ano de trabalho. Para terminá-la por volta de 1802, o autor estudou cuidadosamente a composição, o que é comprovado pela existência de alguns desenhos preparatórios, principalmente estudos de nudez, que foram lançados no mercado e outros, que estão hoje na Galeria de Arte Moderna de Roma. 

Observem. A imagem foi feita para ser reproduzida. Apesar de pintor famoso, Sabatelli não se prende a uma técnica, a escolha pela Acquaforte  no século XIX indica o desejo na divulgação da imagem. As artes sempre circularam, ora restritamente, ora para todos, vide o caso das igrejas com paineis que ajudavam na catequese cristã, visto o interesse da igreja católica em abarcar os não letrados. 
 
A imagem já funcionava bem. Esta tendência na produção e circulação das artes, ocorre pelo seu caráter doutrinário. O artista das pinturas em edificações aristocráticas e religiosas , dos manuscritos e iluminuras próprios do clero e da nobreza, opta pela gravura para divulgar tal obra que, no caso, tinha, sobretudo, o intento de lembrar à sociedade que a praga estivera entre eles, e poderia estar no porvir. 

Considerações preliminares:
 
Houve e haverá um contexto cultural. Enquanto a praga não nos exterminar, realidades serão substituídas pela dimensão visual e, essencialmente após o século XIX, quando a imagem ampliou seu alcance, seu potencial poder essencial da transmissão, como um vírus, tende a se multiplicar em uma velocidade estonteante. 
 
Ao nos voltarmos às três obras aqui arroladas, compreendemos que a  tradução visual colaborou, de forma efetiva, para que o medo do fim penetrasse  nos imaginários sociais. Dito isso, questiona-se: em que medida uma bela feição do feio (e do assombroso) não a torna fascinante? Essa questão não responderemos aqui, mas recorremos a um estudioso do medievo, onde as imagens tiveram papel fulcral. Segundo Eco (2007), para o homem da Idade Média, o universo criado é um todo que deve ser apreciado em seu conjunto, onde as sombras contribuem para o resplandecer das luzes, “e mesmo aquilo que pode ser considerado feio por si mesmo mostra-se belo no quadro da ordem geral” (ECO, 2007, p. 103).
 
 Por este viés, os monstros, servem ao amor e o temor. Aqui comparamos os monstros à praga, a epidemia, suas imagens, suas contradições na cidade, conjunto e fragmento, o todo e as partes. Observamos o quanto nos acostumamos com a praga nas cidade, mantida sob vigilância (sanitária, social, ideológica, policial), mas aceita nas mazelas permanentes das segregações, em que uns podem correr para fora do urbano,  livremente, e penetrar no fascínio do horrendo de longe, na literatura, na pintura e, mais recentemente, pelas telas, de cinema, televisao e internet. A praga está viva. 


Referências
 
CERTEAU, Michel de. A História Cultural: entre práticas e representações. Lisboa: DIFEL, 1990.

ECO, Umberto. Arte e Beleza na Estética Medieval [1987]. Trad. br. Mario Sabino. Rio de Janeiro: Ed. Record, 2010.

ECO, Umberto. História da feiúra. Rio de Janeiro: Record, p. 261, 2007. 
 
FERREIRA, E. ; SOUZA, A. W. ; SANTANA, M. ; ZORZO, F. A. ; PACHECO, L. M. B. ; ROSSI, M. H. W. ; PATEL, B. ; FREITAS, E. ; MEDEIROS, L. S. ; REIS, L. ; TRINCHÃO, G. . Produção Visual: Criatividade, Expressão Gráfica e Cultura Vernacular. 1. ed. Feira de Santana: UEFS Editora, 2010. v. 1. 220 p.

LIMA ALMEIDA, Ana Carolina. A recriação de Florença por Giovanni Boccaccio através do Decameron (1349-1351). Revista Diálogos Mediterrânicos, n. 5, p. 118-131, 2013. 

MORMANDO,  Franco . Piety and Plague: From Byzantium to the Baroque (Sixteenth Century Essays & Studies). United State: Truman State University Press, 2008.

REIS, Lysie. A liberdade que veio do ofício: práticas sociais e cultura dos artífices na Bahia do século XIX. Salvador: EDUFBA, 2013.

REIS, Lysie. Os Homens Rudes e muito Honrados Mesteres. Salvador: EDUNEB, 2019.

*Lysie Reis é Professora Doutora - Titular da Universidade do Estado do Bahia lotada no Departamento de Ciências Exatas e da Terra (DCET) – Campus Salvador, onde ministra aulas no Bacharelado em Urbanismo e no Programa de Pós-Graduação em Estudos Territoriais (PROET), articulando atividades de pesquisa, ensino e extensão.
 
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