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Transexuais / A luta por respeito e espaço no mercado de trabalho



 O olhar meigo e o corpo franzino chegam a contrastar com os posicionamentos decididos, de quem foi calejado e fortalecido pelas violências da vida, que o levaram a tentar dois suicídios. Ao observar o estudante, do segundo ano de pedagogia da Ufba, de nome social Tito Carvalhal, não se imagina o que ele já foi, e ainda é, obrigado a enfrentar para conviver em sociedade. Transexual e militante do movimento LGBT, Tito comemora seus 31 anos de resistência, mas relembra que em seu passado, além das tentativas de acabar com a própria vida, constam três internações em clínicas psiquiátricas, diagnósticos de esquizofrenia, e muito preconceito na hora de conseguir emprego. Se o mundo é hostil à população trans, imagine como isso se reflete diariamente na tentativa de inserção no mercado de trabalho.

De acordo com dados da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), atualmente, devido ao preconceito, 90% das populações trans e travesti foram ou ainda são obrigadas a se prostituir para sobreviver. Vindo do sertão da Bahia, Tito chegou a Salvador com 16 anos. Após passar por vários subempregos, a exemplo de panfletagens nas ruas, conseguiu cursar administração pública, em uma faculdade particular, por meio de financiamento do governo federal. Já formado chegou a coordenador de um projeto social, mas teve a trajetória interrompida pela demissão, que ocorreu no momento em que tentava iniciar a utilização do nome social e um tratamento hormonal para ter feições mais masculinas. Depois disso, não conseguiu mais emprego formal. “Meu currículo não era ruim. Eu era qualificado, mas bastava relatar o nome social que as portas se fechavam. Mesmo hoje em dia, estudando na Ufba, eu não consigo estágio externo. Estou como bolsista de um projeto interno. Mas fora da universidade não consigo nada ligado à educação”, desabafa Carvalhal. Abrigado pelos muros da universidade pública, Tito sabe que se tornou uma exceção. Sonha em ser educador, ajudar a formar uma nova geração, que respeite as diferenças e propicie melhores oportunidades a todas e todos.
                                                                                                                                                      Foto: Andréa Magnoni
Tito Carvalhal - Histórico de dor e resistência no combate à opressão
 
Sobrevivência à margem
 
Com 32 anos de militância LGBT, Andrezza Belushi afirma que a sociedade coloca as/os trans na marginalização por meio de um discurso preconceituoso em que naturaliza, desde a infância, apenas a existência de homens e mulheres. É um conjunto de imposições e regras que condicionam a sociedade a não refletir sobre a possibilidade da existência e aceitação de outras orientações de gênero, como transexuais, travestis, lésbicas etc. “Somos eleitores, pagamos impostos, somos cidadãos, teoricamente temos os direitos garantidos pela constituição. Mas a sociedade não nos dá oportunidades. Nos empurram para a prostituição, para a marginalidade”, diz Andrezza.
 
Sem espaço no mercado, há 17 anos ela coordena em Salvador o Projeto Esperança, que faz o acompanhamento domiciliar e hospitalar de travestis e transexuais soropositivo com Aids. “Sou uma prestadora de serviço. Só tenho como me sustentar e pagar minhas contas, se eu fizer projetos e ganhar ajuda de custo. Criei esse projeto inovador, que é custeado por uma agência social da Bélgica. O valor não chega nem a mil reais”, explica.
 
                                                                                                                                                     Foto: Arquivo pessoal
Andrezza Belushi - Sociedade coloca as/os trans na marginalização
 
Invisibilidade
 
Quando se pesquisa sobre dados da população trans, referente ao mercado de trabalho, a falta de informações disponíveis já é um forte indício de quanto esse segmento é invisível aos olhos da sociedade. A presidente da Antra e vice-presidente da Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais (ABGLT), Keila Simpson, explica que não há meios de encontrar essas informações, pois todos os dados oficiais referentes ao mercado são registrados baseados no binário de gênero masculino e feminino. Não existe a preocupação em ampliar as bases cadastrais e incluir a identidade de gênero, o que reforça a exclusão da população trans.
 
Políticas públicas
 
De acordo com os entrevistados não existem políticas públicas consistentes voltadas à inserção da população trans no mercado de trabalho. Seja no Estado ou no município, o que existem são ações pontuais, a exemplo de cursos de auxiliar administrativo, que afirmam garantias de emprego, mas que ao final da formação, não resultam em trabalho formal e carteira assinada.
 
Keila Simpson valoriza a iniciativa, pois avalia esses cursos como um avanço em relação às antigas ações das ONGs, que ofereciam formações profissionalizantes de cabeleireiro, maquiador, corte e costura, entre outros. Porém, a questão da falta de oportunidade no mercado continua a existir. “As atuais formações são em escolas, com cursos oficiais. Isso é importante. Mas, além da formação, também tem que estabelecer pontes com o mercado para inseri-las”, comenta. Simpson ainda mostra preocupação com a ausência de ascensão profissional. “São empregos dignos, mas que não permitem um crescimento na empresa. Precisamos da oportunidade de entrar em uma empresa e poder ascender profissionalmente”. 
                                                                                                                           Foto: Andréa Magnoni
Keila Simpson ressalta a importância da oportunidade
de ascensão das/os trans nas empresas
Nome social
 
Enraizado em todos os setores da sociedade, o preconceito de gênero, somado à burocracia, continuam a ser barreiras até para ações que, em tese, foram criadas para a inserção social dos trans e travestis. Várias portarias garantem a utilização do nome social em serviços públicos, universidades e outros locais, a exemplo da Portaria nº1820, publicada pelo Serviço Único de Saúde (SUS), em agosto de 2009. Porém, além do processo caminhar extremamente lento na justiça, são exigidas inúmeras documentações e exames médicos.
 
Formada em fonoaudiologia há sete meses, Taciane de Oliveira, há cerca de três anos, entrou com o processo de utilização de nome social. Ciente das barreiras que enfrentaria, devido ao nome masculino na carteira de trabalho, ela chegou a retardar a sua conclusão do curso. A expectativa era concorrer a uma vaga no mercado já com o novo nome.  “A audiência foi remarcada algumas vezes, e por isso, esse processo se tornou ainda mais longo. Tive que terminar a graduação, mesmo não tendo realizado a mudança nos documentos. É um processo difícil, pois, você tem que realizar um acompanhamento psicológico para que aquele profissional emita um laudo, atestando sua transexualidade.  É um absurdo, alguém ter que atestar algo por você, algo tão explicito. Até o momento ainda não mudei os documentos, pois, o processo foi deferido apenas em alguns quesitos. Tive que recorrer novamente”, relata a jovem Taciane.
 
O estudante de pedagogia Tito Carvalhal, do início desta reportagem, também faz críticas à maneira como se dá o processo de alteração de nome. Para ele, a questão da exigência do laudo tem uma “perspectiva patologizante”, ou seja, a necessidade de um laudo clínico deixa a entender que o processo de transexualidade seja interpretado como doença ou fora de um padrão considerado normal. Tito ainda comenta: “A justiça de Salvador não tem retificado o gênero, apenas o nome. Ela tem exigido intervenção cirúrgica para retificar o gênero. Tem quem não queira fazer a cirurgia, mas se quiser ter no documento, você é obrigado à intervenção cirúrgica. Exige ainda uma sexualidade hétero, ou seja, tem que ser homem ou mulher. Se falar, por exemplo que é bissexual, coloca tudo a perder”. 

Cotas na pós-graduação
 
Após a aprovação no Conselho Acadêmico de Ensino, a Universidade Federal da Bahia (Ufba), em 11 de janeiro deste ano, se tornou a primeira universidade do país a incluir, no sistema de cotas para pós-graduação, pessoas trans e quilombolas, além de negras/os, indígenas e indivíduos com deficiência.
                                                                                                                                                               Foto: Ascom Ufba
Reunião do Conselho Acadêmico de Ensino da Ufba
 
De acordo com informações divulgadas pela própria universidade, todos os processos seletivos para os cursos de pós-graduação stricto sensu da Ufba (doutorado e mestrados) terão reservas de, no mínimo, 30% das vagas ofertadas para candidatas/os negras/os (pretas/os e pardas/os) e uma vaga a mais em relação ao total ofertado nos cursos para candidatas/os enquadradas/os em cada uma das categorias de quilombolas, indígenas, pessoas com deficiência e trans (transgêneras/os, transexuais e travestis).
 
Membro do Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Educação da Ufba, a professora Lygia Viégas participou das discussões e se coloca favorável às cotas como forma de incentivar a inserção de trans no universo acadêmico e no mercado de trabalho. Segundo Lygia, a sociedade capitalista criou o mito de que todos possuem oportunidades iguais, de que bastaria se esforçar para ter êxito. Mas, tais condições iguais não são uma realidade concreta. Existe um perfil muita claro daqueles que, por mais que se esforcem, não conseguirão as mesmas oportunidades, e os trans fazem parte desse perfil. “É óbvio que depois de tanto preconceito, quando essa pessoa trans chega à universidade, ela já vem cheia de marcas de que naquele lugar ela não é bem-vinda. Quando a universidade toma a decisão de colocar uma cota já no topo desse processo, em nível mestrado e doutorado, essa é uma decisão muito feliz, que poderá produzir impacto em cadeia em todo o processo. Isso oferece visibilidade para todo um grupo social, que vem sendo excluído e exterminado”, analisa a docente. 
 
                                                                                                                                                              Foto: Marcos Musse
Lygia Viégas faz a defesa das cotas na pós-graduação
 
Viégas ressalta que, apesar do avanço, é necessário pensar como a resolução acontecerá de maneira coerente. Precisam ser estudantes que, além do perfil adequado às cotas, já tenham uma trajetória naquela área de pesquisa em que estão pleiteando. Caso contrário, se tornará apenas um elemento de aprovação automática.
 
Debate nas escolas
 
Para a diretora da pasta de Gênero, Etnia e Diversidade da ADUNEB, Ediane Lopes, uma das maneiras de combate ao preconceito à população LGBT e, consequentemente obter mais espaço no mercado de trabalho, é levar o debate sobre gênero para dentro das escolas. “Além da discussão ser importante na perspectiva do ensino, tanto na universidade, mas, sobretudo, no ensino médio, há um conjunto de adolescentes que tem descoberto sua identidade sexual diferente da binária. Cabe a nós docentes, adquirirmos acúmulo de discussão, nos embasarmos e termos a sensibilidade para compreender como lidar e ajudar na luta pelos direitos dessas pessoas. Temos que explorar melhor o potencial do nosso trabalho, em perspectivas pedagógicas e políticas, de reivindicar que todas e todos possam viver em um mundo sem opressão. O êxito da educação só virá a partir da valorização da diversidade”, comenta Ediane.
 
                                                                                                                                                   Foto: Arquivo pessoal
Ediane Lopes acha fundamental a discussão de gênero nas escolas
 
A professora Lygia Viégas concorda com Ediane e ainda amplia a questão. Para ela, a discussão de gênero tem que estar em todas as etapas da educação, iniciando na infantil. “Se formos pensar no processo de escolarização de uma criança, que traz traços de transexualidade, desde a educação infantil, vai ser um/a aluno/a que vai sofrer inúmeros constrangimentos no processo de escolarização por colegas e professoras/es. Isso tudo pode produzir uma espécie de desilusão com a experiência escolar, fazendo-a ser amarga. Se não criamos oportunidades para que essas pessoas sejam incluídas no processo de escolarização, elas viverão excluídas o tempo todo”, encerra.
 
Números do preconceito
 
Dados disponibilizados pela Rede Trans Brasil mostram que o preconceito e a transfobia são causadores de um verdadeiro extermínio de transexuais e travestis no Brasil. Apenas em 2016 foram 142 assassinatos e 47 tentativas de homicídios. Segundo a ONG internacional Transgender Europe, no período de 2008 e 2014 foram 691 mortes, o que faz do país o campeão em assassinatos no mundo desse segmento populacional. Segundo a Associação Nacional de Travestis e Transexuais, a média de vida de uma pessoa trans no Brasil é de apenas 35 anos.
 
Denuncie
 
Anote aonde denunciar casos de ameaças e agressões a LGBTs em Salvador. Não fique calada/o.
 
# Centro de Referência LGTB – Av. Oceânica, 3731, Rio Vermelho / (71) 3202-2750
# Núcleo LGBT do Ministério Público da Bahia - Av. Joana Angélica, 1312 – Nazaré / (71) 3103-6617 / 69 / 75
# Núcleo LGBT da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) – Rua Portão da Piedade, 16 - Dois de Julho – Piedade / (71) 3329-8900
# Núcleo LGBT e Direitos Humanos da Defensoria Pública do Estado da Bahia - R. Arquimedes Gonçalves, 271 - Jardim Bahiano / (71) 3103-3670