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Povos indígenas no Brasil - Opressão cotidiana e resistência histórica



 Luta pela terra, assassinatos, o descaso do governo Dilma e a tendência de intensificação de ataques aos direitos no período Temer


Vítima de um verdadeiro genocídio e oprimida há séculos, a população indígena brasileira, mesmo demonstrando brava resistência, atualmente constata que a condição de seu povo, historicamente desfavorável, a partir da presidência interina de Michel Temer (PMDB) tende a piorar. 

A preocupação das lideranças indígenas e indigenistas é reforçada por declarações à Folha de S.Paulo, no mês de maio, do novo Ministro da Justiça, Alexandre de Moraes. Segundo o político, todas as ações realizadas este ano, pelo ministério que acaba de assumir, poderão ser revistas. A inquietação tem fundamento, pois, na tentativa de se reaproximar dos Movimentos Sociais, nos últimos dois meses antes de ser afastada, a presidente Dilma Rousseff fez o que já deveria ter sido executado há muito tempo: homologou 15 terras indígenas que estavam com o processo parado. O temor dos defensores das causas dos índios é a revogação das conquistas. O ministro Moraes, de perfil claramente conservador, é ex-secretário de Segurança Pública de São Paulo e foi questionado por inúmeros veículos de comunicação pelo fato de seu escritório de advocacia ter defendido, em mais de 100 casos, uma cooperativa de transporte que teria ligações com a organização criminosa Primeiro Comando da Capital (PCC). 

Além disso, a bancada ruralista do Congresso Nacional, nos primeiros meses deste ano, entregou ao então vice-presidente Michel Temer, uma lista de reivindicações denominada de “Pauta Positiva” (leia aqui). O documento, entre outros pontos, ataca diretamente os direitos indígenas sobre a terra, principalmente, a partir da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 215, que transfere da Presidência da República para o Congresso Nacional a responsabilidade de análise e demarcação das terras indígenas. 

PEC 215 – um duro golpe

A partir da Constituição Federal de 1988 e legislação complementar, que veio a seguir, foi definido que todos os processos de demarcações de terras indígenas e demais populações tradicionais seriam de responsabilidade da Presidência da República.  Tais atitudes seriam realizadas após análises técnicas, que deveriam ter como fundamento os direitos assegurados dos povos indígenas e estudos antropológicos, históricos, ambientais e cartográficos.

O professor da Uneb, Francisco Alfredo Morais Guimarães, que há 30 anos pesquisa a questão indígena, ministra aulas sobre o assunto e também já atuou na Fundação Nacional do Índio (Funai), alerta para as alterações propostas pela PEC 215. “O que se propõe é acrescentar à Constituição Federal o inciso XVIII ao art. 49; modificar o § 4º e acrescentar o § 8º, ambos no art. 231, fazendo com que a aprovação da demarcação das terras, tradicionalmente ocupadas pelos povos indígenas e a ratificação das demarcações já homologadas, passem a ser de competência exclusiva do Congresso Nacional. Isso aconteceria por meio do estabelecimento de critérios e procedimentos de demarcação a serem regulamentados por lei”, afirmou o pesquisador.  

Com muita preocupação Francisco Guimarães evidencia o que está por trás da PEC. “Como muitas propriedades rurais no Brasil são frutos do roubo e da grilagem de terras históricamente pertencentes aos povos indígenas, é fácil entender porque a PEC 215 está sendo proposta pela bancada ruralista. Essa é a maior bancada do Congresso Nacional e conta oficialmente com 162 deputados e 11 senadores. Com a aprovação da PEC, os ruralistas poderão interferir de forma direta na demarcação das terras dos povos indígenas”, argumentou o docente. 
 
                                                                                                                                   Foto: Site Trabalho Indigenista
Mobilização indígena contra a PEC 215

Para exemplificar a preocupação dos índios com a atual conjuntura, o pesquisador Guimarães fez referência à nota divulgada, na segunda semana de maio, pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) e a Mobilização Nacional Indígena, que reuniu o apoio de aproximadamente mil lideranças indígenas. “A nossa preocupação aumenta diante da instalação de um novo governo que a maioria dos setores sociais e populares, como nós, considera ilegítimo e cuja composição é notadamente conservadora e reacionária, além de ser ajustada aos interesses privados que assaltaram o Estado e que ameaçam regredir os direitos sociais conquistados e, em nome da ordem e do progresso, pretendem aprovar medidas administrativas, jurídicas e legislativas para invadir mais uma vez os nossos territórios com grandes empreendimentos: mineração, agronegócio, hidrelétricas, fracking, portos, rodovias e ferrovias, entre outros”, declarava a citada nota.

Conflito pela terra – vítimas do descaso

Apesar da preocupação com o possível aumento dos ataques aos direitos indígenas no governo interino de Michel Temer, fatos demonstram que o problema há tempos já é denunciado pelos índios e por organizações políticas. De acordo com informações do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), em discurso realizado na ONU, em Genebra, em 22 de novembro de 2015, o líder indígena, Eliseu Lopes, representante da Grande Assembleia Aty Guasu Guarani-Kaiowá, declarou: “Meu povo está morrendo, está sofrendo, todos os dias, ataques e massacres... mas o governo brasileiro não apresenta nenhuma solução. É porque a demarcação das nossas terras foi paralisada que a violência, o estupro e a tortura feita por capangas e pistoleiros da região aumentam. O governo defende o interesse das grandes empresas e dos grandes fazendeiros da cana, eucalipto, soja, milho e do gado. Eles lucram muito, enquanto nós estamos morrendo”, declarou.                                                                                                        

O professor de Educação Escolar Indígena da Uneb, Francisco Cancela, concorda que o cenário em que os povos indígenas estão inseridos é trágico. Para o docente, que também é Coordenador do GT Índios na História, da Associação Nacional de História (Anpuh), o quadro de violência contra os índios tem a Bahia como um dos protagonistas. “Nosso estado desponta como um dos mais violentos para os povos indígenas no Brasil. Possui altos índices de ocorrências de assassinatos, conflitos armados, uso desproporcional da força policial e ameaças de vida, além das violações aos direitos básicos, como o descaso com a saúde pública e com a demarcação de seus territórios. Esses ataques aos direitos indígenas são promovidos, principalmente, por latifundiários ligados à grande pecuária e ao mercado de exportação de frutas, bem como pelo próprio Estado brasileiro, como no conflito entre o ICMBio e os Pataxó, onde há sobreposição de territórios indígenas com áreas de proteção ambiental” denuncia Cancela.

O relato do professor Francisco Cancela ganha respaldo nos dados do Relatório de Violências Contra os Povos Indígenas no Brasil - 2014, página 77, do Cimi (leia aqui). De acordo com a publicação, em 2014, foram registrados 70 assassinatos contra índios no país, o que representa um aumento de mais de 32% em relação ao ano anterior. A Bahia aparece como o segundo Estado com o maior número de ocorrências (15), atrás apenas do Mato Grosso do Sul (25). Os outros estados da lista foram Amazonas (10), Pernambuco (4), Minas Gerais (3), Pará (3), Rio Grande do Sul (3), Mato Grosso (2), Tocantins (2), São Paulo (1), Santa Catarina (1) e Goiás (1). O levantamento foi obtido a partir de informações das equipes do Cimi, dos meios de comunicação e da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), através da Lei de Acesso à Informação.

Tupinambá e Pataxó – o mesmo problema

No mês de abril deste ano, período em que ironicamente se comemora o Dia do Índio, o líder de mais de mil Tupinambá da aldeia Serra do Padeiro, Cacique Babau, foi preso pela Polícia Militar em uma ação de reintegração de posse, na região de Ilhéus. Na defesa das terras indígenas, Babau já havia sido detido mais três vezes. Devido às ameaças sofridas por ruralistas da região, ele integra a Programa de Proteção de Defensores dos Direitos Humanos, mantido pela Secretaria de Direitos Humanos.
                                                                                                                                   Foto: Site Racismo Ambiental
Cacique Babau - luta em defesa dos Tupinambá
                                                                                                                                   
Assim como os Tupinambá, os Pataxó, também do Sul da Bahia, são obrigados a ter como principal luta o que lhes deveria ser de direito: a posse da terra a qual são originários. A burocracia e a morosidade da justiça na análise dos processos de posse tentam minar a resistência das duas etnias moradoras do local. Em 2004, a Funai criou um grupo de trabalho para iniciar as discussões sobre as demarcações das terras Tupinambá, até hoje não concluída. Fato semelhante acontece aos Pataxó, que continuam a brigar pela demarcação de suas terras. A proposta da Funai para a normatização da área Pataxó está publicada em Diário Oficial desde 2008. 

Morte infantil

Outro dado alarmante que evidencia o descaso e a política de genocídio da população indígena mostra que, aproximadamente, 40% das mortes de índios brasileiros acontecem entre crianças até quatro anos. A coleta de informações, de 2007 a 2013, ressaltou que o falecimento infantil de indígenas é praticamente nove vezes maior que o percentual de mortes de crianças não índias (4,5%) da mesma faixa etária. Os dados divulgados pela BBC Brasil, por meio de uma pesquisa junto à Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), denunciam a baixa qualidade dos serviços de saúde disponibilizados aos povos originários.   

Ainda no quesito saúde, enquanto doenças infecciosas e parasitárias matam apenas 4,5% da toda a população, entre os índios o índice quase dobra, chegando a 8,2%. Abandonados à própria sorte e sem cuidados médicos adequados, a enfermidade que mais mata os indígenas no país é a gripe, quando evolui à pneumonia. 

O levantamento divulgado pela BBC mostra ainda que nos sete anos de pesquisa 2.365 índios vieram a óbito devido à violência ou acidente, sendo que desses 833 foram homicídios. Além disso, mais 228 são resultantes de lesões que não tiveram a sua causa determinada. No mesmo período, ocorreram 351 suicídios. A pesquisa englobou as informações dos 34 Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEI), que abrigam uma população de 700 mil índios. 
 
                                                                                                                              Foto: Site Diário Centro do Mundo
 
Desafio

Para o professor Francisco Cancela, um dos grandes problemas que os índios enfrentam no Brasil é o desconhecimento da população em geral sobre as histórias e as culturas indígenas. “O silenciamento da participação dos índios em todas as experiências históricas da nossa sociedade, a omissão dos violentos processos de conquista, escravização, extermínio e a folcrorização da contribuição dos índios para a formação de nosso patrimônio cultural foram imposições construídas pelos grupos dominantes, justamente para justificar a exclusão dos índios e fomentar o preconceito e a discriminação”, explica Cancela. Para ele, superar esse desafio será tarefa difícil, mas necessária para reverter o quadro pessimista ainda presente sobre a população nativa.

A luta começa na sala de aula

Aprovada, mas ainda não regulamentada, a Lei 11.645/08 é analisada por grande parte dos especialistas da área como uma conquista do Movimento Indígena. Ela versa sobre a obrigatoriedade do ensino de história e cultura dos índios na escola, o que poderá colaborar para superar o desconhecimento que a população brasileira possui sobre a temática. Porém, a lentidão na regulamentação da norma é um forte obstáculo para que a mesma atue em defesa das comunidades indígenas. 

Sobre os caminhos a seguir, tendo a educação escolar como aliada em defesa dos povos originários, além da regulamentação da Lei 11.645, o professor Francisco Cancela cita quatro pontos primordiais:

- Definir políticas para a formação de professores, pois boa parte dos docentes que hoje atua na escola ainda possui uma visão romântica ou pessimista sobre os povos indígenas;

- Fomentar a produção de material didático que reverta uma abordagem primitivista, evolucionista e preconceituosa, que ainda se faz presente nos manuais escolares;

- Articular os grupos de estudos universitários que já desenvolvem, há décadas, pesquisas sobre a temática com as escolas da educação básica, para que o conjunto dos conhecimentos produzidos ganhe linguagem e estrutura didática;

- Valorizar o protagonismo dos próprios povos indígenas para que eles assumam prioritariamente essa tarefa de ensinar suas histórias e culturas nas escolas não indígenas.