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NOVA CRISE OU CRISE SISTÊMICA?

Sofia Pádua Manzano*

 

As recentes quedas nas bolsas de valores de todo o mundo e as crises das dívidas públicas dos países centrais são anunciadas pela imprensa como uma nova crise, que viria a atrapalhar as tentativas de recuperação econômica mundial após a “crise de 2007/2008”. Esses analistas procuram, a todo custo, diferenciar esse movimento atual e mostrar que a economia privada vai bem, o problema agora é dos Estados extremamente endividados, portanto, a “saída” para o capitalismo deveria ser de ajustes fiscais por parte dos Estados, com cortes nos gastos públicos e aumento dos impostos sobre os trabalhadores. Essa visão de curto prazo, tão comum aos economistas nos últimos anos, não permite perceber os reais problemas por que passa o capitalismo e deixar claro que essa “crise atual” nada mais é do que a continuação e o aprofundamento da crise sistêmica em que se encontra o capitalismo desde a década de 1990.

 

Esse movimento atual é consequência direta das medidas tomadas há dois anos para tentar salvar o grande capital financeiro e os grandes bancos que especularam e sugaram enormes massas de valores produzidos, num movimento irracional de acumulação fictícia em escala global. Quando a crise sistêmica do capitalismo se deixou mostrar claramente com o estouro dos fundos especulativos em 2007 e 2008, levando à falência grandes bancos de investimentos e instituições que aplicavam nos mercados de títulos privados (principalmente nos mercados dos EUA e da Europa), os Estados usaram seu arsenal monetário para socorrer estes bancos e fundos, despejando enormes quantidades de dólares e euros nestas operações de salvamento. Na prática, os Estados assumiram os títulos podres que apareceram após a farra financeira do setor privado e transferiram as dívidas privadas para o setor público. Agora, querem que a população pague ainda mais pela especulação.

 

Naquele momento, havia quase que uma unanimidade em acreditar que o neoliberalismo estava no fim e que as políticas públicas keynesianas voltariam a dominar o cenário econômico, com os Estados voltando a atuar fortemente na economia, com os bancos centrais atuando como emprestador de última instância e garantindo estabilidade. Acreditava-se, candidamente, que teríamos um novo ciclo de crescimento econômico como o verificado no pós-guerra, quando os mercados financeiros foram dominados por políticas públicas que elevavam os salários e o bem-estar dos trabalhadores, além de aumentar a lucratividade das empresas produtivas. Os reformadores otimistas do capitalismo acreditaram que voltariam a regular o livre mercado e a fase especulativa chegaria ao fim. Grande ilusão.

 

Essa crise é uma crise de todo o sistema capitalista, muito mais profunda do que a simples oscilação das bolsas de valores permitem enxergar. O capitalismo é um sistema em que a produção da riqueza é coletiva e a apropriação é privada, cada vez mais concentrada e, diante da concorrência em mercados livres, os capitais competem por taxas de apropriação da riqueza cada vez mais elevadas. Ocorre que o capital não se reproduz sozinho. É o trabalho produtivo, humano e desempenhado no processo de produção de mercadorias que produz a riqueza. Quanto mais se concentra o capital e se esmaga o trabalho, menos valor novo é produzido, provocando crises de acumulação que podem ser cíclicas, quando há possibilidades de retomada dos investimentos produtivos e novos ciclos de emprego e produção de valor, ou pode chegar a um estágio em que as possibilidades de saída para a retomada da acumulação de capital encontram entraves que para serem superados, levam à barbárie.

 

O que vemos hoje é a expressão de uma crise muito mais séria que qualquer crise cíclica anterior. Os capitais estão cada vez mais encontrando dificuldades para sair da pura especulação fictícia e voltar a esfera da produção do valor. Mesmo nesta esfera, dado o grau de produção em escala mundial, utilização dos recursos humanos e ecológicos em todo o mundo, a retomada do desenvolvimento capitalista será o aprofundamento da barbárie, tanto ecológica quanto humana. Para se retomar as taxas de lucros, as empresas vão esmagar os trabalhadores em processos produtivos cada vez mais intensos e brutais, a fim de extrair o máximo de mais-valia absoluta e relativa; vão explorar os recursos naturais até a impossibilidade da continuidade da reprodução da vida humana na terra.

 

No plano da conjuntura, depois de se livrar das dívidas impagáveis produzidas pelo ciclo de créditos baratos e especulação desenfreada, nos anos 2008/2010, o capital agora que extrair dos fundos públicos dos Estados os recursos para continuar seu caminho de acumulação fictícia. Querem que os Estados honrem com suas dívidas públicas, paguem juros e transfiram recursos oriundos de tributação sobre os trabalhadores, para o setor privado. Por isso, todos querem o ajuste fiscal, cortes nos gastos públicos que reduzam salários, aposentadorias, cobrem pela saúde e pela educação, querem o Estado mínimo para a população e máximo para o capital. Além dos trabalhadores dos países periféricos, também os trabalhadores europeus e norte-americanos estão pagando pela crise. Já penalizados com o desemprego e o alto endividamento das famílias, teriam que pagar ainda mais abrindo mão de uma mínima estrutura de bem-estar, já bastante debilitadas pelas reformas nas políticas públicas. As manifestações na Grécia, Espanha, França, EUA, Inglaterra, demonstram a insatisfação da população com estas políticas. Saem às ruas, depredam prédios públicos, incendeiam casas e carros, marcham pelas principais cidades e capitais.

 

Estas resistências espontâneas dos trabalhadores não encontram um operador político capaz de canalizar suas forças para um movimento realmente transformador e revolucionário. As vanguardas políticas encontram-se ideologicamente derrotados, não conseguem se transformar numa vanguarda que poderia promover uma transformação de todo o sistema para um novo patamar de vida na terra. Desta forma, a repressão se faz brutal e o aparato repressor do Estado é direcionado contra a população, provocando verdadeiras guerras internas que podem resultar num movimento crescente de um espectro político fascista, totalitário e ainda mais opressor.

 

A concentração de renda verificada em todo o mundo nas últimas décadas, não só com o empobrecimento dos trabalhadores em geral, mas também entre aqueles que ainda encontram-se empregados e com rendimentos crescentes, contra aqueles trabalhadores precarizados, os imigrantes e os pobre em todos os países, tem contribuído para canalizar a luta política dos trabalhadores contra seus próprios colegas empobrecidos. Movimentos xenófobos, as intolerâncias raciais e religiosas e as ações contra os mais pobres crescem em todo o mundo, criando um quadro propício para o crescimento do fascismo.

 

Além disso, os Estados imperialistas centrais não deixam de promover suas guerras contra países detentores de recursos naturais valiosos. A guerra imperialista atual deixou de ser uma ação coordenada pelos países centrais através da ONU, para assumir a forma de guerras de interesses particulares de cada país, numa federalização da ONU. Os EUA atacam o Iraque e o Afeganistão, enquanto a França ataca a Líbia, e a Rússia ataca as ex-repúblicas soviéticas. Mas a principal guerra que se vislumbra é uma nova guerra civil dentro dos países, com os aparatos repressores dos Estados contra sua população trabalhadora e a redução das liberdades democráticas.

 

O Brasil não está fora do mundo, portanto não está imune à crise. A diferença é que, neste momento, a crise sistêmica que atinge os países centrais, abriu espaço para um pequeno período de crescimento econômico e oportunidades de investimentos produtivos em alguns países subdesenvolvidos. O Brasil está recebendo volumes expressivos de investimentos produtivos e especulativos, tem saldo elevado de reservas internacionais e a aparência de uma certa tranquilidade. Mesmo assim, os ideólogos da barbárie estão, a todo momento, clamando para o ajuste fiscal, reformas trabalhistas e previdenciária, redução da participação do fundo público para atender os trabalhadores, como forma preventiva de criar um “consenso” entre a população brasileira de que dias piores virão, portanto, devem, desde já, se conformar e não agirem como os “vândalos” do hemisfério norte.

 

Os aparatos ideológicos, como a imprensa e a mídia mundial, a cada queda nas bolsas ou crise de pagamentos dos Estados endividados, invocam a ação e o esforço de todos – quer dizer, de todos os trabalhadores – para a tomada de medidas que salvem uma vez mais o processo de acumulação especulativa mundial para evitar “o fim do mundo”. Esse tipo de argumento está vinculado à ação ideológica, que já vem de longa data, que pretende identificar a sobrevivência do capitalismo com a sobrevivência da própria humanidade. Como se esse fosse o único modo de vida possível e evitam, assim, a reflexão crítica e a própria visão de que é justamente esse modo de produção que está destruindo a possibilidade de vida. Esse esforço propagandístico esconde o fato de que o que existe na sociedade é uma construção humana, e não o resultado de um destino que está fora de nosso alcance, conduzido pela ação extra-humana, como uma “mão invisível” que conduze inexoravelmente os homens por um único meio de vida possível.

 

Separam, sob perspectivas distintas, a brutal desigualdade existente na sociedade hoje, os milhões de pessoas que vivem em extrema pobreza e a massa de trabalhadores submetidos às mais cruéis condições de trabalho para conseguirem uma mínima sobrevivência, das “perdas bilionárias” que sofrem os aplicadores nos mercados financeiros. Tratam estes dois aspectos como se fossem resultados de movimentos completamente distintos. Convencem os trabalhadores subempregados e mal remunerados de que a culpa por tal situação é deles mesmos, por não serem suficientemente “qualificados” para participarem do sistema produtivo, culpam os pobres por não terem “habitus” incorporados que os levem a um comportamento pautado pela disciplina e a racionalidade, tratam a miséria de milhões de africanos, sul americanos e asiáticos como se fosse resultado de problemas climáticos, desqualificação, indisciplina ou corrupção de governos de baixo nível.

 

Por outro lado, os movimentos do mercado financeiro e as crises globais são analisados como movimentos típicos de um mercado abstrato, formado por estruturas institucionais que não estariam sob o controle de pessoas e que possuem as melhores intenções para bem “alocar os recursos escassos”.

 

Ao separarem as esferas de análise, não se permite perceber a irracionalidade de um sistema social podre, degradante e sem sentido. Escondem da humanidade que o seu destino está ao seu alcance e que, se chegamos a construir o que aqui temos, somos nós que temos a força para mudar. Claro que essa força não partirá do capital nem de seu representante legal, o Estado. Essa força está na ação concreta dos trabalhadores de todos os países, unidos e conscientes de que quem produz a riqueza deve dela se apropriar.

 

 

*Sofia Pádua Manzano – economista; professora do curso de Direito da USJT; diretora do ICP.