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Mariátegui e a construção do marxismo latinoamericano

Milton Pinheiro*

Dos elementos essenciais da formação social peruana, e da perspectiva do socialismo, Mariátegui estabelece uma formulação inovadora e profunda para pensar e transformar a sua realidade social. Existe em Mariátegui a formulação de um pensamento político latino-americano, que parte da sua complexa análise sobre o Peru. Afinal, quem é este pensador seminal que construiu essa ponte para interpretarmos a América Latina?

 

O pensador marxista José Carlos Mariátegui nasceu em 14 de junho de 1894, em Moquegua, na região sul do Peru. Viveu a maior parte de sua existência na cidade de Lima. Quando de seu nascimento, no Peru se iniciou um processo de transformações que desembocaram nas mudanças da década de 20 do século XX. O jovem Amauta teve uma vida muito pobre e logo precisou trabalhar para ajudar no sustento de sua família que não contava com a presença da figura paterna, mas que tinha na mãe, María Amalia, costureira e uma lutadora pela sobrevivência. Mariátegui sempre teve problemas de saúde, em especial, a partir de 1902, quando sofreu um acidente que o deixou manco.

 

Sua formação intelectual foi bastante irregular. Esteve na escola em Huacho, ainda criança, a única parte regular de seus estudos e, a partir daí teve uma formação autodidata. A partir de 1909, Mariátegui foi trabalhar no jornal La Prensa, passando da oficina à atividade jornalística, e desenvolvendo intensa atividade literária. Com um grupo de literatos, fundou a revista Colónida, em 1916, que teve uma vida curta.

 

O seu pensamento, neste período, foi pautado pelo que podemos chamar de anti-capitalismo romântico, na interpretação da sociedade e da cultura, conforme a concepção teórica de Michael Lowy e Lukács.

 

Por sua vinculação com as letras, e iniciação política com a participação nos acontecimentos de 1918 e 1919, com as manifestações estudantis e a greve geral no Peru, em 1919, Mariátegui, juntamente com César Falcón, fundou o jornal La Razón. Também em parceria com César Falcón, fundou a revista Nuestra Época, publicações que tiveram também, curta existência,

 

A formação intelectual de Mariátegui pode ser dividida em dois períodos. A “Idade da Pedra”, até 1918, e a formação marxista que ocorreu de 1919 até 1923, chamada de a “Idade da Revolução”. Para Mariátegui, os primeiros momentos da formação de um homem não o definem, afinal ele mesmo afirmava que “a partir de 1918, nauseado com a política criolla, orientei-me resolutamente para o socialismo.”

 

Mariátegui, em virtude de turbulências políticas no Peru, auto exilou-se na Europa, em 1919, onde permaneceu até 1923. Passou pela França, mas residiu na Itália a maior parte de seu tempo. Aí ele mantém contato com o marxismo, participou do Congresso de Livorno, em janeiro de 1921, quando foi fundado o Partido Comunista Italiano. Provavelmente nesta época, deve ter tido contato com Gramsci. Durante esse período, conforme Aníbal Quijano, “Mariátegui encontrará o materialismo histórico, como método de interpretação da realidade e como método de ação revolucionária.” Durante sua estada na Itália, fez contato teóricos e pessoais com Croce, Sorel e Gobetti. Desse mirante italiano percebe-se a consolidação de sua formação marxista.

 

O elemento central de seus estudos, a análise da realidade concreta e o limiar da sociedade capitalista do Peru, é o ponto de inflexão na sua compreensão da formação social de seu país. A natureza política desta formação e seus aspectos econômicos são estudados no exame do governo Pardo, no Oncenio de Leguia, no surgimento da APRA, e do que se convencionou chamar de Aprismo.

 

A presença do imperialismo estadunidense, transformando o capitalismo peruano em monopolista, o desenvolvimento dos negócios centrados no açúcar e no algodão, a forte concentração fundiária de 1850 a 1927, a presença imperialista nos negócios de cobre, carvão e petróleo, todo esse complexo social possibilitou o florescer de uma formulação que fugiu daquilo que Raimundo Faoro considerava como básico, ou seja, o entendimento de que no início do século XX, quando se pensava o Peru, o Brasil ou a Argentina, de maneira geral, o que se fazia era consumir o que a Europa criou para explicar essas realidades. Porque para essa compreensão não existia um quadro cultural autônomo.

 

A partir daí percebe-se que Mariátegui, assim como Caio Prado Jr. no Brasil, foi capaz de criar um marxismo latinoamericano bastante original, articulando teoria e realidade. É um marxismo de corte leninista, do ponto de vista metodológico, e não um marxismo localizado na América latina.

 

O grande tema de Mariátegui, assim como de Caio Prado Jr, é o passado colonial de seu país. Ele entendeu o passado como obstáculo, algo que impede o presente e o futuro de se realizar, daí a necessidade de interpretá-lo. Portanto, estudar o capitalismo tardio, assim como Lênin fez para a Rússia, onde encontrou o campo específico para entender a sua realidade, com os seus estudos sobre O Desenvolvimento do Capitalismo na Rússia e As Duas Táticas da Social-Democracia na Revolução Democrática, Mariátegui também encontrou uma formulação para a questão peruana. Sua crítica  ao capitalismo é histórico-concreta. Para ele, a crise do capitalismo peruano residia na contradição entre a política (nacional) e a economia (internacional). Nesse sentido, Mariátegui consegue formular a questão central do Peru, ou seja, a problemática indígena. Essa perspectiva o leva a desenvolver um marxismo para as condições objetivas de seu país.

 

Como seu projeto era conhecer a realidade peruana e levá-la para a revolução socialista, essa compreensão superou o falso dilema entre cosmopolitismo e localismo, pois entendia a questão universal do socialismo na sua tarefa local. Portanto, a revolução passava por suas dimensões política, econômica e cultural. Essa formulação não vê a questão indígena apenas como uma problemática étnica, mas sim como uma questão econômica e de estrutura fundiária.

 

As formulações de Mariátegui tornam-se relevantes na medida em que recupera a experiência de povos como os Incas, para avançar no sentido da revolução proposta pelo marxismo comunista. Para ele a transição socialista latinoamericana encontrará no comunismo primitivo dos Incas, elementos para a revolução. Assim, a revolução em nosso continente será uma etapa da revolução socialista mundial. A concepção teórica do socialismo, mesmo tendo nascido na Europa, para Mariátegui, deve levar em conta as particularidades locais, e a questão do comunismo primitivo incaico é uma de suas grandes contribuições. Para ele o socialismo não pode ser na América apenas um decalque, mas sim, uma criação heróica.

 

Vale ressaltar a observação de Juan Carlos Portantiero, ao qualificar que a América Latina não é o oriente, mas também não se trata do ocidente, conforme a concepção de Gramsci, pois a América Latina tem uma sociedade civil desarticulada, incapaz de se representar politicamente e com um Estado próximo do bonapartismo.

 

No movimento comunista internacional, Mariátegui tece uma crítica ao mecanicismo positivista da segunda Internacional. No entanto, encontra na terceira internacional uma crítica às suas concepções, em especial por meio do comportamento do dirigente do PCP Eudocio Ravines, indicado por ele para substituí-lo na Secretaria Geral do Partido e também pelo mecanicismo stalinsta.

 

Em 1942, o Partido Comunista Peruano lançou uma nova orientação política, expulsou Ravines e o novo secretário geral, um intelectual poderosamente situado no seio do proletariado, Jorge Del Prado trouxe para a cena política do PCP, o resgate do papel de Mariátegui na história do partido e do Peru, como intérprete da nossa América.

 

Um dos pontos problemáticos do pensamento Mariateguista, vinculado ao fato de ele ter sofrido influência de Sorel, refere-se a questão do mito. O pensador peruano considerava que a tradição coletivista dos Incas se apresentava como um exemplo. A questão do mito, vista a partir do conceito de Sorel, favoreceria o desenvolvimento comunista entre as massas camponesas. Para Mariátegui, a alma do índio é o mito, o seu princípio coletivista é a revolução socialista. Portanto, é a justa análise sobre o índio que levará ao caminho do socialismo.

 

Dentro da vasta produção intelectual de Mariátegui sobressaem os livros Historia de las Crisis Mundiales, Defensa Del Marxismo, Ideologia y Política, e, em especial o livro 7 Ensayos de Interpretación de La Realidad Peruana.

 

Os 7 Ensayos trata dos seguintes aspectos:

 

1 – Evolução econômica discorre sobre os aspectos econômicos da história do Peru, desde a colônia, a república, a questão do salitre, a economia agrária e o polêmico latifundismo feudal;

 

2 – Formulação e revisão histórica do papel do índio no Peru;

 

3 – Os vários aspectos da apropriação privada ou coletiva da terra;

 

4 – A herança francesa e americana no processo de educação pública, a questão universitária, a universidade em Lima e a questão ideológica;

 

5 - A igreja católica, o catolicismo e a questão da religião local;

 

6 - Os aspectos da política entre o regionalismo e o centralismo;

 

7 – A crítica literária e a literatura como interpretação da sociedade.

 

Mariátegui foi um homem de ação centrado numa forte elaboração teórica. Foi fundador e primeiro secretário geral do Partido Socialista do Peru, em 1928, que logo se transformou no Partido Comunista Peruano. Sua ação Continuou como dirigente político da revolução peruano, fundando em 1929, a Confederação Geral dos Trabalhadores do Peru (CGTP), uma grande central sindical até hoje congregando mais de 80% do sindicalismo peruano.

 

Em virtude do agravamento de sua saúde, renunciou à secretaria geral do partido e no dia 16 de abril de 1930, pela manhã, com menos de 36 anos, morreu como um dos maiores teóricos do marxismo latinoamericano, homem de pensamento e ação, enterrado no dia 17, acompanhado por milhares de operários que cantavam a internacional. Nasceu assim, uma ferramenta indispensável para os que lutam: o marxismo latinoamericano, como interpretação singular da América andina.

 

* Professor de Ciência Política da Universidade do Estado da Bahia (Uneb) e editor da revista Novos Temas. Autor e organizador dos livros, K. Marx: intérprete da contemporaneidade, e Outubro e as experiências socialistas do século XX.